quarta-feira, 30 de abril de 2014

PARTIDA - Zila Mamede

..: PARTIDA :..

Quero abraçar, na fuga, o pensamento
da brisa, das areias, dos sargaços;
quero partir levando nos meus braços
a paisagem que bebo no momento.

Quero que os céus me levem; meu intento
é ganhar novas rotas; mas os traços
do virgem mar molhando-me de abraços
serão brancas tristezas, meu tormento.

Legando-te meus mares e rochedos,
serei tranqüila. Rumarei sem medos
de arrancar dessas praias meu carinho.

Amando-as me verás nas puras vagas.
Eu te verei nos ventos de outras plagas:
juntos – o mar em nós será caminho.


Salinas, (1958)


_______________ Zila Mamede







sexta-feira, 11 de abril de 2014

O GESTO - José Sanderson D. F. de Negreiros

..: O gesto :..


Despe o corpo, tatuado de

relâmpagos. Ensarilhas ventos

ao som da ternura e apunhalas

o horizonte. Mas dentro de ti,

o coração canta, além,

do remoto mar das tapeçarias.

Deitaste o pão e água em minha

solidão, e amo-te por me teres

amado pelo próprio amor

desprotegida, ó incendiária do repouso.




____________________ José Sanderson de Negreiros

quinta-feira, 3 de abril de 2014

SEM TÍTULO - Pedro Neto

Mais um soneto para tocar os corações boêmios... Pedro Neto, sua presença é sempre bem-vinda em nosso blog. Saravá, meu amigo!


. . : : SEM TÍTULO : : . .


Te procurei numa noite de domingo clichê
Como um peixe fora d’água atrás do mar,
Mas a única porta aberta era a do bar.
Peço uma dose, mas bastava um pingo de você.

Furava com um cigarro o guardanapo
Feito uma moça furou meu coração,
Porém, o que me queimou era como vulcão
E meu peito de papel ficou um trapo.

Queimou a cama e o lençol, queimou
Minhas carnes com sua pele febril,
Abrasou minha vida com esse amor doentio.

Pego outro guardanapo ainda aflito
E novamente estou em sua mão
Acendo outro cigarro, e você fura, outra vez, meu coração.


_______________ Pedro Neto

RESILIÊNCIA - Miguel Neto

Com vocês, mais uma composição do amigo Miguel Neto, poeta que dispensa comentários sobre sua visão do tempo tão bem representada no poema que segue:


. . : : RESILIÊNCIA : : . .


Quando a inocência protegia pela ignorância das coisas,
Nuvens negras não povoavam as cabeças despreocupadas,
As cores eram sempre claras e aos pés o caminho era calçado,
Os embates, sem inimigos, tinham o prazo de um sorriso,
Sem exigir, sempre, atitudes corajosas,
A verdade, única opção, incontestável e inflamada
Trazia em sua certeza, a certeza inábil de viver sem passado,
Mas tendo no futuro, todo o futuro que era preciso.

Das vezes em que pensamos em crescer, na verdade já é findo,
Já é roubada a proteção dos sentidos e da alma límpida,
Arcamos, dessa feita, com a sabedoria própria do homem,
Aquela, só dele, que causa a dor do aperto no peito.
Nuvens de chumbo que no horizonte já vem vindo,
Naturais, agora, que a inocência é ínfima,
Naturais tanto quanto os males que o consome,
Naturais quanto o fim do mundo que jaz desfeito.

As perdas são normais nesse trajeto, aos nossos olhos, se são dos outros.
As nossas são sempre irreparáveis, injustas e em má hora.
Dessas, a princípio, nada é capaz de trazer conforto,
Qualquer palavra, por tentativa, tem por efeito a piora.

Quando um pedaço se vai desse mundo completo,
Guardamos o que é possível de sua presença,
Mantemos intactos sua lembrança e nosso afeto,
Lutando contra a lacuna e o buraco que se formam,
Exorcizando o poder da distância.

O tempo trará a resiliência;
A crença, a esperança;
Os que ficaram, a continuidade;
A saudade, a presença;
O coração, a verdade.



_______________ Miguel Neto